Desde 2017, o Projeto Ochroma vem interagindo com comunidades ribeirinhas do médio Madeira, tendo Manicoré como um dos município de atuação, e tem se dedicado também à observação das condições de vida das comunidades. Nessa região o garimpo é uma atividade predominante em algumas épocas do ano e as comunidades enfrentam desafios significativos, conforme conta a professora Marta Pereira, botânica da Universidade do Estado do Amazonas – UEA, uma das coordenadoras da inciativa.
O projeto Ochroma tem como objetivo avaliar o potencial biotecnológico do uso do pau-de-balsa (Ochroma pyramidale) para substituir o mercúrio na extração do ouro – estudo ainda em andamento. O extrato já é usado em outros países, o diferencial de acordo com Marta é o seu uso no garimpo de aluvião, praticado na região. Entretanto, pelas necessidades evidenciadas durante os trabalhos de campo, o projeto passou a atuar também para garantir maior segurança alimentar às comunidades.
Conversamos com a professora Marta para entender melhor o projeto e a realidade que tem sido encontrada na região. Confira!
Como surgiu a ideia do Projeto Ochroma e qual o seu principal objetivo em relação às comunidades ribeirinhas do médio Madeira?
Marta Pereira: O projeto surgiu pela minha atuação como professora da Universidade. Eu comecei a administrar disciplinas na região do médio Madeira, municípios de Manicoré, Novo Aripuanã. Durante esse processo, eu também desenvolvi um projeto de pós-doutorado, para trabalhar com o acúmulo de mercúrio em briófitas, que são as plantas avasculares. Nesse momento, eu passei a observar a quantidade de balsas que ficavam no rio Madeira, no médio Madeira, ali do Novo Aripuanã, Borba até Manicoré, mais ou menos.
E, convivendo com alunos que eram filhos de extrativistas mineral, que tinham familiares, eu passei a entender que esses extrativistas de minerais dessa região, eram também os extrativistas da castanha, do açaí. Que eram comunitários, que devido às dificuldades que enfrentavam de escoar à produção, de saúde, falta de escola, de educação, acabavam indo para a coisa mais fácil. Porque construir uma balsinha, financiar em 50 vezes, e daí conseguire tirar um dinheiro que é mais do que tu consegue com a produção, que não tem muito apoio é mais fácil. Daí surgiu essa questão de como ajudar essas comunidades
Ao mesmo tempo que, nas minhas andanças por essa região, eu descobri que, há muito tempo, quando não tinham dinheiro para comprar mercúrio, utilizavam uma planta, que era o pau de balsa, a Ochroma Pyramidale. Aí passei a pesquisar essa planta, descobri que em outros lugares como na Colômbia já se usava, mas que em ouro de aluvião, que é muito fino, ainda não tinha sido estudado. Chamei colegas e convidei para a gente estudar essa planta e ver se podia retirar o mercúrio desse processo no Madeira, uma vez que a gente sabe que peixes e comunidades já estão contaminados.
Como a comunidade ribeirinha tem recebido a iniciativa do projeto, quais os desafios na interação e qual o papel da participação ativa dessas comunidades em todo o processo?
Marta Pereira: Eles dizem no interior, nessa região, que a única pessoa que chega em todas as comunidades e é bem recebida sou eu e meu grupo. Tanto o projeto da substituição do mercúrio nas comunidades que são mais voltadas para o garimpo, como os viveiros, nós somos recebidos de uma forma incrível. A gente já fez um projeto dos viveiros e quando a gente realizar as visitas as comunidades já construíram, então elas já estão apropriadas disso. Primeiro porque sabem que esse viveiro não é do projeto Ochroma, é das comunidades. Nós somos auxiliares deles para que comecem a produzir suas mudas, suas plantas, suas áreas de SAF.
Qual é o potencial biotecnológico do uso do pau-de-balsa na substituição do mercúrio na extração do ouro e como essa substituição pode beneficiar as comunidades locais?
Marta Pereira: Nós estamos agora trabalhando nos testes de conceito, que é realmente, em laboratório, fazer a separação do ouro do resto do que sai do fundo do rio, que é areia, ferro, platina, entre outros. Os resultados tem sido muito positivos, e acreditamos que o pau de balsa poderá, num futuro próximo, substituir o mercúrio realmente nessa mineração de média e pequena escala. E assim, para as comunidades, vai ser um produto de baixo custo. A ideia do projeto é primeiro construir mini-usinas em que eles possam extrair, fazer o extrato nas próprias comunidades, e segundo, retirar um produto que é prejudicial à saúde no momento do uso, que é o vapor do mercúrio, o mercúrio jogado na água, e, diminuindo esse mercúrio que é jogado nos rios e na atmosfera, com certeza diminuímos a contaminação. Isso vai trazer benefícios para o pescado, que é a principal alimentação dos extrativistas minerais, que se alimentam do peixe, usam essa água na preparação do alimento… Então, os benefícios serão enormes, tanto em saúde pública como em saúde ambiental.
Além da questão ambiental, você relata que o projeto percebeu a preocupante tendência de abandono da agricultura familiar. Qual é a realidade social e econômica das comunidades com as quais o projeto atua?
Marta Pereira: O difícil escoamento da produção, as secas, a perda da produção pelas cheias foram desestimulando esses agricultores. Falta de incentivo, falta de mecanização. Tudo isso foi causando, digamos, o abandono da agricultura. O extrativismo mineral leva as pessoas a ter um retorno mais rápido, né? Por exemplo, você precisa ficar colhendo borracha, vamos supor. Uma tonelada de borracha para vender por 300 reais, enquanto que um grama de ouro vale 300 reais. E você consegue 10 gramas de ouro em uma semana. Então, isso é um incentivo, né? As distâncias, o custo para ir da comunidade até a cidade, para levar um filho doente, para comprar o alimento. Então, assim, a maioria abandona a agricultura. E desse abandono acaba faltando coisas básicas: às vezes farinha, a própria banana, o açaí. Então, esse é um cenário que a gente tem encontrado nessas comunidades.
Só em Manicoré são mais ou menos 200 comunidades nessa situação. Então, a gente tem levado o incentivo, a volta da produção, a questão do carbono mesmo, a questão de plantar pelo menos para ter mais alimento para comer. Tudo isso o projeto tem, claro que a gente não tem uma abrangência maior porque somos pequenos ainda, mas como somos bem recebidos, como universidade e extensão, a gente tem um alcance bom. Então, temos tentado levar isso, a necessidade de voltar e de engajar a juventude, principalmente, para a agricultura, com técnicas mais adequadas, buscar as cadeias de produção, escoamento. São aspectos que demonstram que precisamos ajudar e fortalecer as associações e as cooperativas.
Na sua avaliação, qual o principal fator que tem contribuído para a perpetuação do ciclo de abandono da agricultura em favor do garimpo nas comunidades ribeirinhas do rio Madeira?
Marta Pereira: Na minha percepção é a facilidade. Apesar do garimpo ser um trabalho extremamente cansativo, quase que desumano, ele tem um retorno mais rápido, que a agricultura não dá. Então é isso que eles dizem. Ah, eu planto banana, às vezes não tem comprador, apodrece, eu perco tudo. Mesma questão com a borracha, então não tem a valorização. O ouro não, sempre vai ter um comprador clandestino, vai ter mesmo que venda por um pouco menos, mas sempre vai ter. E é um valor alto, é um dinheiro rápido. Então isso faz com que a juventude prefira esse esse dinheiro mais rápido do que o da agricultura ou do extrativismo ou da sóciobioeconomia.
E quais são os maiores desafios enfrentados pelas famílias que optam pelo garimpo em termos de segurança alimentar, acesso a serviços básicos e qualidade de vida?
Marta Pereira: Desse tempo que venho convivendo com essas famílias no garimpo, os maiores desafios são as crianças que muitas vezes saem da escola e ficam com as mães no garimpo; as mulheres que ficam muito vulneráveis a abusos, doenças; o barulho direto o tempo todo dentro nas balsas; alimentação que muitas vezes não é saudável, porque comem coisas processadas, enlatadas, o que tem ali; o contato com o mercúrio; às vezes tem violência… Todos esses são problemas enfrentados por essas famílias. Existe ali sim uma convivência harmônica, mas existem todos os problemas que a gente sabe que existem nos garimpos. Principalmente na época da pandemia, por exemplo, as famílias todas foram para o garimpo levando as crianças. Isso é um problema sério, no meu ponto de vista. Não ter alimentos saudáveis porque a produção diminui, não trabalhar mais na roça, isso também faz com que tenham problemas de segurança alimentar.
Como a presença ativa da equipe do projeto tem influenciado as comunidades a retomarem a prática da agricultura e como tem sido a receptividade dessa abordagem?
Marta Pereira: A gente tem tido uma receptividade incrível e eles sempre dizem: “se eu tivesse uma outra forma de ter uma vida digna, eu sairia do garimpo”. Então, eles querem produzir, principalmente coisas que tenham mais facilidade para vender, como coisas de ciclo rápido, como abóbora, feijão, melancia, a banana, açaí, querem fazer os SAFs, que são os sistemas agroflorestais, querem recuperar áreas degradadas. Se tu conviveres com essas pessoas, vais entender que a maior parte delas não gostaria de estar ali, porque é uma vida muito dura. Então, é incrível porque o projeto tem todas as comunidades às quais chega, ele é recebido assim, e a gente vai nas comunidades que nos chamam, então o projeto é solicitado pela comunidade. Então, essa é a principal questão do projeto. Nós somos solicitados pelas comunidades e nós vamos até eles para implantar o projeto. E daí já existe uma apropriação do projeto por parte deles.
Quais são as principais atividades desenvolvidas nos viveiros e hortas comunitárias implantadas pelo projeto e qual seu impacto na segurança alimentar das famílias ribeirinhas?
Marta Pereira: Nos viveros priorizamos as mudas de frutíferas que utilizam na alimentação, as plantas pra SAF, que são o açaí, a banana, estamos implementando andiroba também, que depois pode ser um produto, um bioproduto, óleo. Nas hortas a gente faz canteiros comunitários, então ali eles vão ter a cebolinha, o coentro, repolho, o feijão. Vão ter principalmente o que comer, não só o peixe e a farinha.
Também trabalhamos com eles coisas que podem comer, que tem no quintal, que são as PANCS (Plantas Alimenticias Não Convencionais). Então, acredito que o projeto tem um impacto positivo nisso, pela receptividade, porque eles querem aprender e querem colocar em prática. E existe uma união ali, que é desde as crianças, as mulheres, os homens adultos, os jovens, que por meio de brincadeiras vão aprendendo as técnicas e se envolvem no projeto.
A atual abordagem do governo em relação à regulamentação e fiscalização do garimpo na região do rio Madeira tem sido pela via repressiva. Na sua avaliação, essa abordagem tem sido efetiva?
Marta Pereira: A abordagem atual da questão do governo tem sido de uma forma realmente repressiva, mas é a única forma que é possível, porque é uma atividade ilegal. Mas não é uma abordagem efetiva. Não é efetiva porque nós temos ali, só na região que eu atuo, no médio Madeira, 3 mil, 4 mil balsas. Aí queima 300, dá um impacto, aí aqueles pequenos proprietários ficam endividados, mas voltam para o garimpo. Acredito que a única forma de realmente melhorar essa situação é tendo um extrativismo mineral legalizado, fiscalizado, regulamentado e com muita orientação para essas famílias. E oportunidades para aquelas famílias que querem sair do garimpo. Tem que ser um trabalho em conjunto: do Ministério Público, das universidades, do governo e, sim, também dos órgãos de repressão e de fiscalização IBAMA, ICMBIO, IPAAM, mas que exista todo um trabalho social, porque só a repressão não vai acabar com o garimpo.
Existem atividades implementadas oficialmente pelos governos para promover alternativas sustentáveis de subsistência para as comunidades ribeirinhas?
Marta Pereira: As prefeituras, a Secretaria de Produção de Manicoré e dos outros municípios, o governo do Estado, a FAS, a CEPRÓ e outras instituições, ONGs, têm algumas iniciativas que auxiliam, mas infelizmente ainda é pouco, porque precisa que se invista mais em mecanização, em sementes, principalmente ajuda técnica, porque os órgãos possuem poucas pessoas, poucos equipamentos, falta verba, e são muitas comunidades muito distantes.
Por exemplo, a Comunidade de Manicoré, a última que a gente fez viveiro, fica distante cinco horas de voadeira [barco de pequeno porte] da sede do município. As coisas não acontecem, não chegam lá. Então, existe o incentivo, principalmente, por parte das prefeituras e das secretarias de município, mas ainda não é o suficiente, porque são muitas comunidades, muitas pessoas que ficam distantes da sede do município e que necessitam dessa agricultura, dessa ajuda, desse auxílio para poder implementar SAFs, uma produção que consiga sustentá-los, para que possam sair do garimpo. Sem isso, não é possível.
Sobre a situação que vem ocorrendo de destruição de equipamentos de mineração. Há um tempo atrás as dragas tinham licença e título minerário ou expectativa de que receberiam essa licença. De uma hora para outra essas licenças foram suspensas e a legislação mudou. Poderia nos contar do seu ponto de vista e das informações que você tem, o que aconteceu e qual o impacto dessas ações na prática?
Marta Pereira: Quanto a essas licenças, toda essa região, onde existem as cooperativas, já tiveram licenças em 2008, 2014. Em 2017, no estado do Amazonas, todas as licenças foram caçadas. E aí existem muitas especulações, de que não existe um estudo de impacto do leito do rio, de irregularidades das cooperativas, de equipamentos que não estão adequados, então uma série de coisas. E por conta disso, o governador, em 2016, deu uma licença meio que intempestiva e isso fez com que o Ministério Público caçasse todas as licenças do Amazonas, da calha do Rio Madeira. E desde então o IPAAM, que era quem realizava as licenças, ficou impedido de dar novas licenças. Seria o Ibama [o responsável], mas o Ibama passa para o IPAM, o IPAM passa para o Ibama, e eles ficam nessa discussão. E aí, como está impedido e os equipamentos não estão realmente de forma adequada – a maioria das balsas são muito rudimentares –, acaba que isso impede essa legalização. Mas é preciso que ocorra. Ocorrendo a legalização, vai acabar diminuindo a quantidade das balsas, porque tem que se adequar à lei. Até 2030 tem que retirar o mercúrio do processo, então o pau de balsa é uma das alternativas. Mas se não houver fortalecimento das cooperativas, legalização, organização, de fato muito dificilmente vai haver essa legalização aqui na calha do Madeira.
Qual é seu sonho para essas comunidades?
Marta Pereira: É fomentar a agricultura, de fato. Que eles possam ter segurança alimentar em primeiro lugar, que é ter o que comer produzido por eles e depender menos dos auxílios do governo. Segundo, retirar o mercúrio do processo, mesmo que alguns ainda continuem no garimpo, que seja de forma legalizada. E também levar a educação ambiental sobre SAF (Sistemas Agroflorestais), recuperação áreas degradadas, auxiliar eles com essas questões mais técnicas. E também auxiliar aqueles que têm áreas de terra legalizada, a buscar a certificação de crédito de carbono, que pode ser um dinheiro revertido em benefícios para a comunidade, principalmente na questão da agricultura.